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OPINIÃO: REFLEXÕES SOBRE O SETOR DA CONSTRUÇÃO APÓS A GUERRA NA UCRÂNIA

Categoria:  Artigos de Opinião

Publicado

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JOSÉ MATOS E SILVA

Eng.º Civil

Especialista em Geotecnia, Estruturas e Direção e Gestão da Construção (O.E.)

Quando recebemos o convite para apresentar este artigo veio-nos à memória uma célebre frase proferida por um conhecido futebolista internacional português, ao responder a um jornalista que o questionava sobre a sua previsão do que seria o desafio que a sua equipa iria disputar dentro de alguns minutos: “prognósticos só no fim do jogo”. Pensámos em responder ao citado convite, dizendo que “previsões só no fim da guerra na Ucrânia”. Mas, a nossa relação, de vários anos, com o Jornal Construir fez-nos aceitar o convite e tentar fazer alguma futurologia.

Pouco tempo antes desta guerra já existia, nomeadamente em Portugal, uma acentuada subida de preços de alguns materiais de construção, devido à pandemia de Covid-19 a qual originou um abrandamento da produção industrial do que resultou uma oferta menor do que a procura necessitava, até porque o setor da construção manteve-se em atividade, sem grandes interrupções no desenvolvimento de obras em curso, contrariamente ao que aconteceu no setor fabril produtor de materiais necessários àquelas obras. Os prazos de fornecimento desses materiais foram-se dilatando e a pouca produção que ia existindo era rapidamente assimilada e contra pagamentos muitas vezes a pronto. A escalada dos preços da energia também teve um forte contributo para esta situação. Quando o Mundo, pouco a pouco, ia aliviando as medidas restritivas relacionadas com a proteção contra a pandemia e se previa que se fosse conseguindo atingir um equilíbrio entre a oferta e a procura, surgiu a guerra da Ucrânia que originou uma rápida reversão daquela tendência.

Poderia pensar-se que a guerra, criando inúmeros refugiados, poderia contribuir para que os países do Ocidente que os acolheram, poderiam ter acesso a uma mão de obra qualificada, dado saber-se que os países da antiga União Soviética privilegiavam o ensino, as artes e o desporto como forma de sublimação da falta de liberdade política. Contudo, o facto da lei marcial que os dirigentes ucranianos impuseram a partir da invasão russa, impediu a saída do país dos homens em idade ativa, pelo que os refugiados são, maioritariamente, idosos, mulheres e crianças, o que não permite considerar a sua integração eficaz no setor da construção.

Quando a guerra terminar, há algo certo: a Ucrânia terá de ser reconstruída, em larga escala, dado o elevado grau de destruição provocado, pelos bombardeamentos russos, no parque habitacional e comercial da Ucrânia. É natural que venha a ocorrer algo de semelhante ao conhecido “Plano Marshall” que, após a Segunda Grande Guerra Mundial, permitiu a reconstrução da parte da Europa afetada por aquela guerra. Esta reconstrução será uma oportunidade para melhorar a qualidade das construções que existiam, na Ucrânia, antes da guerra. São abundantemente conhecidas situações de reconstrução de cidades, após a ocorrência de fenómenos naturais de grande magnitude, ou derivadas de confrontos militares. Entre os exemplos de cidades reconstruídas após cataclismos naturais, temos S. Petersburgo e Lisboa. A primeira foi devastada por fortes incêndios em 1736 e, para reconstruir as zonas mais afetadas, um projeto foi elaborado, em 1737, por um comité sob o comando de Burkhard Christoph von Münnich. No caso de Lisboa, um forte sismo (supõe-se que do grau 9 na Escala de Richter) ocorrido em 1 de novembro de 1755, seguido por um maremoto e pelos subsequentes incêndios, destruiu grande parte da zona baixa da cidade, perto do Rio Tejo. O engenheiro-mor do reino, Manuel da Maia, apresentou, logo no dia 4 de dezembro de 1755, a 1.ª parte de um tratado onde propôs várias hipóteses para a reconstrução da cidade. Formou três equipas de arquitetos/engenheiros militares, chefiadas respetivamente por Elias Sebastião Poppe, Eugénio dos Santos Carvalho e Gualter da Fonseca, a quem foram solicitados os projetos de reconstrução, os quais deviam ser norteados pelo objetivo de melhorar a cidade, tendo em conta a segurança dos edifícios, a higiene das ruas e das habitações. O plano escolhido, em 12 de junho de 1758, foi o do arquiteto Eugénio dos Santos Carvalho o qual, depois do falecimento deste, viria a ser desnvolvido por Carlos Mardel (este um arquiteto húngaro radicado em Portugal). Esta reconstrução permitiu eliminar o ordenamento medieval da cidade, com ruas estreitas e turtuosas, substituindo-o por uma quadrícula de ruas largas e edifícos construídos com uma solução que melhorava o seu comportamento sísmico: a denominada “Gaiola Pombalina”, com elementos de madeira dispostos em forma de “Cruz de Santo André” para assegurar a resistência segundo as várias direções e sentidos. Como exemplo duma reconstrução após uma guerra, temos o caso de Washington D.C. pois, em agosto de 1814, na sequência da denominada “Guerra de 1812”, tropas britânicas invadiram a capital americana, vindas do Canadá, e incendiaram as principais construções da cidade. O Presidente dos Estados Unidos e os membros do Congresso Federal já haviam saído da cidade, e o moral da população atingiu um nível muito baixo, dado que as tropas americanas encarregadas de defender a capital fugiram antes de serem atacadas pelos britânicos. Após o fim da guerra, Washington passou por um processo de reconstrução, que terminou em 1819.

Um aspeto relevante, caso se opte por reerguer edifícios nos mesmos locais dos que foram destruídos na Ucrânia, é o de que as fundações destes, muito provavelmente, não terão sido afetadas. Houve um estudo muito interessante realizado por um engenheiro israelita relativamente a um edifício, numa cidade de Israel, que foi totalmente destruído por um bombardeamento palestiniano. O edifício estava fundado em estacas e, tendo sido estas analisadas através de numerosos testes, nomeadamente de integridade, os mesmos revelaram que as estacas mantiveram as suas características de resistência, tendo sido aproveitadas quando da reconstrução da superestrutura do edifício.

Certamente que os países de maior poderio económico e que mais participarão no plano de apoio à reconstrução da Ucrânia, serão aqueles cujos projetistas (arquitetos e engenheiros) e empreiteiros mais aproveitarão as vantagens dessa reconstrução. Possivelmente os maiores empreiteiros portugueses, que já vêm atuando na cena internacional, poderão integrar consórcios liderados pelos empreiteiros dos países que estarão na linha da frente do apoio internacional à reconstrução da Ucrânia.

Esta guerra veio demonstrar uma evolução altamente negativa nas relações institucionais. Há pouco mais de um século as relações contratuais eram muitas vezes seladas apenas com um aperto de mão e com o recurso à “palavra de honra”. Quem prevaricasse arriscava-se a perder a vida num duelo para o qual seria desafiado pela contraparte do negócio. Mais tarde, evoluiu-se para acordos e tratados celebrados exclusivamente por escrito, nomeadamente nas relações diplomáticas com a criação da Organização das Nações Unidas e a celebração de convenções como a de Genebra. O Direito Internacional parecia estar assegurado, sobretudo depois do fim da “Guerra Fria”. Já a partir do final do século passado que se vem assistindo a inúmeras infrações de acordos e tratados internacionais, que conduziram a inúmeros conflitos no Médio Oriente e que chegaram até à recente invasão da Ucrânia. Voltou a existir a denominada “lei da selva” que havia imperado nos alvores da Humanidade. Mesmo em Portugal, nas relações comerciais mais correntes, a “lei da selva” impera, como é o caso que nos foi recentemente relatado duma conhecida empresa comercializadora de eletricidade e gás, que tinha um contrato, com um amigo nosso, para o fornecimento destas duas utilidades. Uma terceira entidade, que nem sequer estava nomeada no contrato, e que assegura a distribuição de gás para a empresa com quem o contrato havia sido celebrado, decidiu sem pré-aviso e sem que houvesse qualquer falta de pagamento, proceder ao corte do fornecimento de gás no passado dia 28/03/2022, contrariando as disposições da entidade reguladora que, em comunicado, impedira qualquer corte até 31/03/2022 e o mesmo teria de ter um pré-aviso de 20 dias, por escrito. O nosso amigo questionou a entidade com quem celebrara o contrato, a qual se eximiu a qualquer responsabilidade pelo sucedido. Ou seja, já em Portugal

e em contratos correntes, uma das Partes não assume os seus compromissos e o faz impunemente, até porque os montantes envolvidos nos danos ao nosso amigo não justificam o recurso à via judicial.

Concluindo: pensamos que o pós-guerra na Ucrânia continuará, no curto prazo, a proporcionar uma escalada de preços que só terminará quando o valor a pagar pelas diversas energias voltar à normalidade e quando o equilíbrio entre a oferta e a procura se reestabelecer. As oportunidades de negócio, resultantes da reconstrução das cidades afetadas pela guerra, estarão limitadas aos projetistas e empreiteiros dos países que irão proporcionar o apoio financeiro à Ucrânia, pelo que os elementos portugueses do setor da construção não terão acesso aos maiores quinhões na repartição que se irá processar.

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JOSÉ MATOS E SILVA

Eng.º Civil

Especialista em Geotecnia, Estruturas e Direção e Gestão da Construção (O.E.)

Quando recebemos o convite para apresentar este artigo veio-nos à memória uma célebre frase proferida por um conhecido futebolista internacional português, ao responder a um jornalista que o questionava sobre a sua previsão do que seria o desafio que a sua equipa iria disputar dentro de alguns minutos: “prognósticos só no fim do jogo”. Pensámos em responder ao citado convite, dizendo que “previsões só no fim da guerra na Ucrânia”. Mas, a nossa relação, de vários anos, com o Jornal Construir fez-nos aceitar o convite e tentar fazer alguma futurologia.

Pouco tempo antes desta guerra já existia, nomeadamente em Portugal, uma acentuada subida de preços de alguns materiais de construção, devido à pandemia de Covid-19 a qual originou um abrandamento da produção industrial do que resultou uma oferta menor do que a procura necessitava, até porque o setor da construção manteve-se em atividade, sem grandes interrupções no desenvolvimento de obras em curso, contrariamente ao que aconteceu no setor fabril produtor de materiais necessários àquelas obras. Os prazos de fornecimento desses materiais foram-se dilatando e a pouca produção que ia existindo era rapidamente assimilada e contra pagamentos muitas vezes a pronto. A escalada dos preços da energia também teve um forte contributo para esta situação. Quando o Mundo, pouco a pouco, ia aliviando as medidas restritivas relacionadas com a proteção contra a pandemia e se previa que se fosse conseguindo atingir um equilíbrio entre a oferta e a procura, surgiu a guerra da Ucrânia que originou uma rápida reversão daquela tendência.

Poderia pensar-se que a guerra, criando inúmeros refugiados, poderia contribuir para que os países do Ocidente que os acolheram, poderiam ter acesso a uma mão de obra qualificada, dado saber-se que os países da antiga União Soviética privilegiavam o ensino, as artes e o desporto como forma de sublimação da falta de liberdade política. Contudo, o facto da lei marcial que os dirigentes ucranianos impuseram a partir da invasão russa, impediu a saída do país dos homens em idade ativa, pelo que os refugiados são, maioritariamente, idosos, mulheres e crianças, o que não permite considerar a sua integração eficaz no setor da construção.

Quando a guerra terminar, há algo certo: a Ucrânia terá de ser reconstruída, em larga escala, dado o elevado grau de destruição provocado, pelos bombardeamentos russos, no parque habitacional e comercial da Ucrânia. É natural que venha a ocorrer algo de semelhante ao conhecido “Plano Marshall” que, após a Segunda Grande Guerra Mundial, permitiu a reconstrução da parte da Europa afetada por aquela guerra. Esta reconstrução será uma oportunidade para melhorar a qualidade das construções que existiam, na Ucrânia, antes da guerra. São abundantemente conhecidas situações de reconstrução de cidades, após a ocorrência de fenómenos naturais de grande magnitude, ou derivadas de confrontos militares. Entre os exemplos de cidades reconstruídas após cataclismos naturais, temos S. Petersburgo e Lisboa. A primeira foi devastada por fortes incêndios em 1736 e, para reconstruir as zonas mais afetadas, um projeto foi elaborado, em 1737, por um comité sob o comando de Burkhard Christoph von Münnich. No caso de Lisboa, um forte sismo (supõe-se que do grau 9 na Escala de Richter) ocorrido em 1 de novembro de 1755, seguido por um maremoto e pelos subsequentes incêndios, destruiu grande parte da zona baixa da cidade, perto do Rio Tejo. O engenheiro-mor do reino, Manuel da Maia, apresentou, logo no dia 4 de dezembro de 1755, a 1.ª parte de um tratado onde propôs várias hipóteses para a reconstrução da cidade. Formou três equipas de arquitetos/engenheiros militares, chefiadas respetivamente por Elias Sebastião Poppe, Eugénio dos Santos Carvalho e Gualter da Fonseca, a quem foram solicitados os projetos de reconstrução, os quais deviam ser norteados pelo objetivo de melhorar a cidade, tendo em conta a segurança dos edifícios, a higiene das ruas e das habitações. O plano escolhido, em 12 de junho de 1758, foi o do arquiteto Eugénio dos Santos Carvalho o qual, depois do falecimento deste, viria a ser desnvolvido por Carlos Mardel (este um arquiteto húngaro radicado em Portugal). Esta reconstrução permitiu eliminar o ordenamento medieval da cidade, com ruas estreitas e turtuosas, substituindo-o por uma quadrícula de ruas largas e edifícos construídos com uma solução que melhorava o seu comportamento sísmico: a denominada “Gaiola Pombalina”, com elementos de madeira dispostos em forma de “Cruz de Santo André” para assegurar a resistência segundo as várias direções e sentidos. Como exemplo duma reconstrução após uma guerra, temos o caso de Washington D.C. pois, em agosto de 1814, na sequência da denominada “Guerra de 1812”, tropas britânicas invadiram a capital americana, vindas do Canadá, e incendiaram as principais construções da cidade. O Presidente dos Estados Unidos e os membros do Congresso Federal já haviam saído da cidade, e o moral da população atingiu um nível muito baixo, dado que as tropas americanas encarregadas de defender a capital fugiram antes de serem atacadas pelos britânicos. Após o fim da guerra, Washington passou por um processo de reconstrução, que terminou em 1819.

Um aspeto relevante, caso se opte por reerguer edifícios nos mesmos locais dos que foram destruídos na Ucrânia, é o de que as fundações destes, muito provavelmente, não terão sido afetadas. Houve um estudo muito interessante realizado por um engenheiro israelita relativamente a um edifício, numa cidade de Israel, que foi totalmente destruído por um bombardeamento palestiniano. O edifício estava fundado em estacas e, tendo sido estas analisadas através de numerosos testes, nomeadamente de integridade, os mesmos revelaram que as estacas mantiveram as suas características de resistência, tendo sido aproveitadas quando da reconstrução da superestrutura do edifício.

Certamente que os países de maior poderio económico e que mais participarão no plano de apoio à reconstrução da Ucrânia, serão aqueles cujos projetistas (arquitetos e engenheiros) e empreiteiros mais aproveitarão as vantagens dessa reconstrução. Possivelmente os maiores empreiteiros portugueses, que já vêm atuando na cena internacional, poderão integrar consórcios liderados pelos empreiteiros dos países que estarão na linha da frente do apoio internacional à reconstrução da Ucrânia.

Esta guerra veio demonstrar uma evolução altamente negativa nas relações institucionais. Há pouco mais de um século as relações contratuais eram muitas vezes seladas apenas com um aperto de mão e com o recurso à “palavra de honra”. Quem prevaricasse arriscava-se a perder a vida num duelo para o qual seria desafiado pela contraparte do negócio. Mais tarde, evoluiu-se para acordos e tratados celebrados exclusivamente por escrito, nomeadamente nas relações diplomáticas com a criação da Organização das Nações Unidas e a celebração de convenções como a de Genebra. O Direito Internacional parecia estar assegurado, sobretudo depois do fim da “Guerra Fria”. Já a partir do final do século passado que se vem assistindo a inúmeras infrações de acordos e tratados internacionais, que conduziram a inúmeros conflitos no Médio Oriente e que chegaram até à recente invasão da Ucrânia. Voltou a existir a denominada “lei da selva” que havia imperado nos alvores da Humanidade. Mesmo em Portugal, nas relações comerciais mais correntes, a “lei da selva” impera, como é o caso que nos foi recentemente relatado duma conhecida empresa comercializadora de eletricidade e gás, que tinha um contrato, com um amigo nosso, para o fornecimento destas duas utilidades. Uma terceira entidade, que nem sequer estava nomeada no contrato, e que assegura a distribuição de gás para a empresa com quem o contrato havia sido celebrado, decidiu sem pré-aviso e sem que houvesse qualquer falta de pagamento, proceder ao corte do fornecimento de gás no passado dia 28/03/2022, contrariando as disposições da entidade reguladora que, em comunicado, impedira qualquer corte até 31/03/2022 e o mesmo teria de ter um pré-aviso de 20 dias, por escrito. O nosso amigo questionou a entidade com quem celebrara o contrato, a qual se eximiu a qualquer responsabilidade pelo sucedido. Ou seja, já em Portugal

e em contratos correntes, uma das Partes não assume os seus compromissos e o faz impunemente, até porque os montantes envolvidos nos danos ao nosso amigo não justificam o recurso à via judicial.

Concluindo: pensamos que o pós-guerra na Ucrânia continuará, no curto prazo, a proporcionar uma escalada de preços que só terminará quando o valor a pagar pelas diversas energias voltar à normalidade e quando o equilíbrio entre a oferta e a procura se reestabelecer. As oportunidades de negócio, resultantes da reconstrução das cidades afetadas pela guerra, estarão limitadas aos projetistas e empreiteiros dos países que irão proporcionar o apoio financeiro à Ucrânia, pelo que os elementos portugueses do setor da construção não terão acesso aos maiores quinhões na repartição que se irá processar.

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JOSÉ MATOS E SILVA

Eng.º Civil

Especialista em Geotecnia, Estruturas e Direção e Gestão da Construção (O.E.)

Quando recebemos o convite para apresentar este artigo veio-nos à memória uma célebre frase proferida por um conhecido futebolista internacional português, ao responder a um jornalista que o questionava sobre a sua previsão do que seria o desafio que a sua equipa iria disputar dentro de alguns minutos: “prognósticos só no fim do jogo”. Pensámos em responder ao citado convite, dizendo que “previsões só no fim da guerra na Ucrânia”. Mas, a nossa relação, de vários anos, com o Jornal Construir fez-nos aceitar o convite e tentar fazer alguma futurologia.

Pouco tempo antes desta guerra já existia, nomeadamente em Portugal, uma acentuada subida de preços de alguns materiais de construção, devido à pandemia de Covid-19 a qual originou um abrandamento da produção industrial do que resultou uma oferta menor do que a procura necessitava, até porque o setor da construção manteve-se em atividade, sem grandes interrupções no desenvolvimento de obras em curso, contrariamente ao que aconteceu no setor fabril produtor de materiais necessários àquelas obras. Os prazos de fornecimento desses materiais foram-se dilatando e a pouca produção que ia existindo era rapidamente assimilada e contra pagamentos muitas vezes a pronto. A escalada dos preços da energia também teve um forte contributo para esta situação. Quando o Mundo, pouco a pouco, ia aliviando as medidas restritivas relacionadas com a proteção contra a pandemia e se previa que se fosse conseguindo atingir um equilíbrio entre a oferta e a procura, surgiu a guerra da Ucrânia que originou uma rápida reversão daquela tendência.

Poderia pensar-se que a guerra, criando inúmeros refugiados, poderia contribuir para que os países do Ocidente que os acolheram, poderiam ter acesso a uma mão de obra qualificada, dado saber-se que os países da antiga União Soviética privilegiavam o ensino, as artes e o desporto como forma de sublimação da falta de liberdade política. Contudo, o facto da lei marcial que os dirigentes ucranianos impuseram a partir da invasão russa, impediu a saída do país dos homens em idade ativa, pelo que os refugiados são, maioritariamente, idosos, mulheres e crianças, o que não permite considerar a sua integração eficaz no setor da construção.

Quando a guerra terminar, há algo certo: a Ucrânia terá de ser reconstruída, em larga escala, dado o elevado grau de destruição provocado, pelos bombardeamentos russos, no parque habitacional e comercial da Ucrânia. É natural que venha a ocorrer algo de semelhante ao conhecido “Plano Marshall” que, após a Segunda Grande Guerra Mundial, permitiu a reconstrução da parte da Europa afetada por aquela guerra. Esta reconstrução será uma oportunidade para melhorar a qualidade das construções que existiam, na Ucrânia, antes da guerra. São abundantemente conhecidas situações de reconstrução de cidades, após a ocorrência de fenómenos naturais de grande magnitude, ou derivadas de confrontos militares. Entre os exemplos de cidades reconstruídas após cataclismos naturais, temos S. Petersburgo e Lisboa. A primeira foi devastada por fortes incêndios em 1736 e, para reconstruir as zonas mais afetadas, um projeto foi elaborado, em 1737, por um comité sob o comando de Burkhard Christoph von Münnich. No caso de Lisboa, um forte sismo (supõe-se que do grau 9 na Escala de Richter) ocorrido em 1 de novembro de 1755, seguido por um maremoto e pelos subsequentes incêndios, destruiu grande parte da zona baixa da cidade, perto do Rio Tejo. O engenheiro-mor do reino, Manuel da Maia, apresentou, logo no dia 4 de dezembro de 1755, a 1.ª parte de um tratado onde propôs várias hipóteses para a reconstrução da cidade. Formou três equipas de arquitetos/engenheiros militares, chefiadas respetivamente por Elias Sebastião Poppe, Eugénio dos Santos Carvalho e Gualter da Fonseca, a quem foram solicitados os projetos de reconstrução, os quais deviam ser norteados pelo objetivo de melhorar a cidade, tendo em conta a segurança dos edifícios, a higiene das ruas e das habitações. O plano escolhido, em 12 de junho de 1758, foi o do arquiteto Eugénio dos Santos Carvalho o qual, depois do falecimento deste, viria a ser desnvolvido por Carlos Mardel (este um arquiteto húngaro radicado em Portugal). Esta reconstrução permitiu eliminar o ordenamento medieval da cidade, com ruas estreitas e turtuosas, substituindo-o por uma quadrícula de ruas largas e edifícos construídos com uma solução que melhorava o seu comportamento sísmico: a denominada “Gaiola Pombalina”, com elementos de madeira dispostos em forma de “Cruz de Santo André” para assegurar a resistência segundo as várias direções e sentidos. Como exemplo duma reconstrução após uma guerra, temos o caso de Washington D.C. pois, em agosto de 1814, na sequência da denominada “Guerra de 1812”, tropas britânicas invadiram a capital americana, vindas do Canadá, e incendiaram as principais construções da cidade. O Presidente dos Estados Unidos e os membros do Congresso Federal já haviam saído da cidade, e o moral da população atingiu um nível muito baixo, dado que as tropas americanas encarregadas de defender a capital fugiram antes de serem atacadas pelos britânicos. Após o fim da guerra, Washington passou por um processo de reconstrução, que terminou em 1819.

Um aspeto relevante, caso se opte por reerguer edifícios nos mesmos locais dos que foram destruídos na Ucrânia, é o de que as fundações destes, muito provavelmente, não terão sido afetadas. Houve um estudo muito interessante realizado por um engenheiro israelita relativamente a um edifício, numa cidade de Israel, que foi totalmente destruído por um bombardeamento palestiniano. O edifício estava fundado em estacas e, tendo sido estas analisadas através de numerosos testes, nomeadamente de integridade, os mesmos revelaram que as estacas mantiveram as suas características de resistência, tendo sido aproveitadas quando da reconstrução da superestrutura do edifício.

Certamente que os países de maior poderio económico e que mais participarão no plano de apoio à reconstrução da Ucrânia, serão aqueles cujos projetistas (arquitetos e engenheiros) e empreiteiros mais aproveitarão as vantagens dessa reconstrução. Possivelmente os maiores empreiteiros portugueses, que já vêm atuando na cena internacional, poderão integrar consórcios liderados pelos empreiteiros dos países que estarão na linha da frente do apoio internacional à reconstrução da Ucrânia.

Esta guerra veio demonstrar uma evolução altamente negativa nas relações institucionais. Há pouco mais de um século as relações contratuais eram muitas vezes seladas apenas com um aperto de mão e com o recurso à “palavra de honra”. Quem prevaricasse arriscava-se a perder a vida num duelo para o qual seria desafiado pela contraparte do negócio. Mais tarde, evoluiu-se para acordos e tratados celebrados exclusivamente por escrito, nomeadamente nas relações diplomáticas com a criação da Organização das Nações Unidas e a celebração de convenções como a de Genebra. O Direito Internacional parecia estar assegurado, sobretudo depois do fim da “Guerra Fria”. Já a partir do final do século passado que se vem assistindo a inúmeras infrações de acordos e tratados internacionais, que conduziram a inúmeros conflitos no Médio Oriente e que chegaram até à recente invasão da Ucrânia. Voltou a existir a denominada “lei da selva” que havia imperado nos alvores da Humanidade. Mesmo em Portugal, nas relações comerciais mais correntes, a “lei da selva” impera, como é o caso que nos foi recentemente relatado duma conhecida empresa comercializadora de eletricidade e gás, que tinha um contrato, com um amigo nosso, para o fornecimento destas duas utilidades. Uma terceira entidade, que nem sequer estava nomeada no contrato, e que assegura a distribuição de gás para a empresa com quem o contrato havia sido celebrado, decidiu sem pré-aviso e sem que houvesse qualquer falta de pagamento, proceder ao corte do fornecimento de gás no passado dia 28/03/2022, contrariando as disposições da entidade reguladora que, em comunicado, impedira qualquer corte até 31/03/2022 e o mesmo teria de ter um pré-aviso de 20 dias, por escrito. O nosso amigo questionou a entidade com quem celebrara o contrato, a qual se eximiu a qualquer responsabilidade pelo sucedido. Ou seja, já em Portugal

e em contratos correntes, uma das Partes não assume os seus compromissos e o faz impunemente, até porque os montantes envolvidos nos danos ao nosso amigo não justificam o recurso à via judicial.

Concluindo: pensamos que o pós-guerra na Ucrânia continuará, no curto prazo, a proporcionar uma escalada de preços que só terminará quando o valor a pagar pelas diversas energias voltar à normalidade e quando o equilíbrio entre a oferta e a procura se reestabelecer. As oportunidades de negócio, resultantes da reconstrução das cidades afetadas pela guerra, estarão limitadas aos projetistas e empreiteiros dos países que irão proporcionar o apoio financeiro à Ucrânia, pelo que os elementos portugueses do setor da construção não terão acesso aos maiores quinhões na repartição que se irá processar.