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“A arquitectura em Portugal encontra-se em processo de reconfiguração...”

Categoria:  ReportagensCategoria:  Reportagens > Arquitectura

Publicado

PAG 36 - ADRIANA FLORET - ENTREVISTA

Adriana Floret

arquitecta

César Alves | calves@construir.pt

Tem coordenado vários projectos de reabilitação de edifícios, em especial na cidade do Porto e elaborou documentos estratégicos para quarteirões no centro histórico do Porto. É sócia fundadora e presidente da mesa da assembleia da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Protecção do Património e ainda é assessora do Sistema de Certificação Ambiental LiderA.

O tema da reabilitação esteve sempre presente no seu percurso desde o académico até hoje. Que ambição é está? O que o motiva nesta área?

Quando cheguei ao Porto para estudar arquitectura, deparei-me com uma situação bizarra: por um lado, a cidade encontrava-se num acelerado processo de degradação física e humana (estamos a falar dos anos 90), mas, por outro lado, na faculdade pouca importância se dava a estas questões. O ensino da arquitectura continuava muito centrado na criação de objectos arquitectónicos e não no reaproveitamento dos existentes. Eu própria, como todos os estudantes de arquitectura, vivia fascinada pelos grandes nomes da arquitectura do star system. Comprava compulsivamente revistas, frequentava conferências e coleccionava monografias das grandes obras dos grandes arquitectos. Um dia, caí em mim: andava muito entretida com isto tudo, quando a própria cidade em que eu estudava e vivia era uma magnífica peça de arquitectura em colapso. Quando surgiu a oportunidade de reorientar o meu percurso académico para a reabilitação, senti-me finalmente em casa.

Da sua experiência, esta área da reabilitação se apresenta como um potencial de crescimento?

É evidente que sim. Até ao final dos anos 90 poucos técnicos se dedicavam à reabilitação como principal actividade. Era uma prática menor, por assim dizer. Em 2001, quando comecei a fazer disto um projecto de vida, era muito difícil convencer o cliente particular a investir. Convém dizer que trabalhei desde do início com a encomenda particular e nunca propriamente com a encomenda pública e, por esse motivo, consigo traçar na minha cabeça de uma forma muito clara a percepção do mercado sobre a reabilitação. Mas dizia que era difícil convencer o particular a investir ou, pelo menos, a cuidar do seu próprio património porque a reabilitação era vista como uma responsabilidade do Estado e não como uma oportunidade de negócio. Assim, de início os projectos foram arrancados a ferros e executados muitas vezes com apoio de programas e de apoios públicos. O momento de viragem é 2006/2007 quando começamos a receber de uma forma regular encomendas sustentadas apenas na racionalidade económica da operação urbanística em si mesma, com os apoios a desempenharem um papel marginal na tomada de decisão dos investidores, sobretudo nacionais. Hoje em dia o cenário evoluiu para a internacionalização do sector. Hoje, metades dos nossos projectos são de clientes estrangeiros: belgas, espanhóis, franceses, alemães, israelitas…Só podemos estar optimistas quanto ao futuro, o que não quer dizer que o futuro será o mero prolongamento da situação actual. As coisas irão mudar, o sector vai ter de se readaptar às novas necessidades. A reabilitação irá se estender para territórios menos nobres e periféricos. O parque imobiliário construído a partir dos anos 70, por exemplo, ele próprio precisa de se reinventar e isso é todo um novo desafio técnico e político que teremos pela frente. Também será necessário corrigir muitas asneiras que estão a ser feitas hoje em dia em nome da reabilitação. A moda, de uma alguma forma, passará, mas as coisas não voltarão a ser o que eram. Haverá um período de amadurecimento em que a reabilitação deixará de ser a excepção ou a caça à galinha dos ovos de ouro e passará a ser mais uma disciplina e actividade económica aborrecidamente quotidiana mas vital, fechando-se um ciclo.

Consideram que o trabalho que fazem no vosso gabinete em colaboração com arquitectos-visitantes e gabinetes fará com que as intervenções futuras na reabilitação serão desenvolvidas com os mesmos preceitos ou não é este o objectivo?

Apesar de termos um grupo residente de arquitectos, com a maioria a acompanhar-nos há vários anos, sentimos a necessidade de reforçar a equipa para necessidades específicas, próprias de cada projecto. No entanto, um arquitecto-visitante não é um tarefeiro, mas alguém que trabalha embebido na equipa, ou seja, desenvolve-se uma parceria para um projecto em específico sendo uma das condições que parte do trabalho seja desenvolvido no próprio atelier, onde poderá interagir com os técnicos residentes e usufruir das mesmas condições de trabalho. É claro que o que nos interessa não é apenas a mão-de-obra, mas a própria experiência de intercâmbio entre o elemento externo e a equipa. O arquitecto-visitante acede ao nosso know-how e utiliza os mesmos parâmetros que os colaboradores residentes e, em contrapartida, contamina com a sua própria experiência a equipa residente. Seleccionamos os arquitectos-visitantes em função de vários critérios e dependendo das nossas necessidades do momento: pode ser a formação académica, o domínio de um determinado software, a experiência profissional, etc. Não se trata, por isso, de um estágio mas de um intercâmbio o que quer dizer que devem ter algo mais para oferecer do que a força de trabalho. Só abrimos estágios quando queremos reforçar a equipa residente para podermos formar de raiz os nossos próprios colaboradores. Concluindo: a finalidade desta estratégia é a de revitalizar a nossa prática. O pior que nos pode acontecer é fecharmo-nos sobre nós próprios e perder o contacto com o que se passa à nossa volta. Há uma espinha dorsal que permanece, há um lastro resultante de uma acumulação de experiência, mas a história não acaba aqui, certo? É preciso questionar, é preciso aprender e renovar conhecimentos.

Com que objectivo é que fizeram o levantamento dos edifícios na zona histórica do Porto?

O levantamento de edifícios de uma série de quarteirões na zona histórica e baixa foi uma encomenda da Porto Vivo Sociedade de Reabilitação Urbana. Contextualizando: como desde do início da nossa actividade concentrámos a nossa atenção nesta zona da cidade, quando é constituída a primeira SRU do país, em 2004, fomos naturalmente seleccionados como um dos atelier`s parceiros para a reabilitação. No decurso desta parceria levámos a cabo, em colaboração com a equipa da SRU, o levantamento arquitectónico e social de mais de 250 edifícios e participámos na elaboração das bases para vários documentos estratégicos de operação de reabilitação. Foi a primeira vez que de uma forma tão sistemática se fez um levantamento de uma área tão vasta da cidade. Devo confessar que em resultado deste trabalho de campo (não nos limitávamos a visitar os prédios, fazíamos também um relatório exaustivo de todas as fracções, das condições de habitabilidade e salubridade, bem como o levantamento do cadastro e identificação dos proprietários) chegámos a sentir um certo cepticismo e até desânimo. O abandono a que os imóveis e as pessoas estavam votados ultrapassou tudo aquilo que poderia imaginar. Recordo-me, por exemplo, de uma situação em que quando contactámos o proprietário, este manifestou total surpresa por ter um imóvel no centro histórico. Aliás, começou por negar peremptoriamente, mas, passados alguns dias devolveu a chamada a confirmar que, de facto, era proprietário. Estamos a falar de um imóvel imponente, bem à vista de todos, que não tinha qualquer manutenção há mais de 20 anos…

Como se poderá caracterizar, actualmente, o dinamismo do sector da reabilitação na cidade do Porto?

O Porto foi experimentando vários caminhos. Sempre foi uma cidade que se questionou a si própria, que foi fazendo planos para si própria que foram variando ao gosto das necessidades e do estado da arte em cada época. No passado até se chegou a equacionar a demolição de toda a zona histórica. Ficamo-nos por pequenas demolições parciais como a avenida da ponte ou o Terreiro da Sé (às vezes é bom não ter dinheiro). No pós-25 de Abril a urgência foi a de dar resposta ao verdadeiro estado de calamidade social do centro histórico e durante algum tempo este foi o principal enfoque das políticas por razões muito óbvias. Há um ponto de viragem, apesar de à época pouca gente se ter apercebido disso, que foi o reconhecimento pela UNESCO do Porto como Património da Humanidade. Esta é a data a partir da qual a agenda da reabilitação começou a mudar. Outro ponto verdadeiramente decisivo foi a criação da primeira Sociedade de Reabilitação Urbana do país, em 2004, a qual assume uma missão muito clara: criar condições para o investimento privado na reabilitação. Junte-se a isto o afluxo extraordinário de turistas e temos o porquê do dinamismo deste sector na cidade. O Porto sempre foi dinâmico, a diferença é que o dinamismo actual, para o melhor e para o pior, resulta do forte investimento privado nacional e estrangeiro.

Há ainda espaço para se continuar a reabilitar no Porto?

Ainda há muito espaço para a reabilitação. Conhecemos muito bem a cidade porque o Porto não é uma cidade onde apenas se habita, ela quase que exige um permanente estado de alerta e de atenção. Esta cidade é uma obsessão para todos os portuenses. Mas, ainda assim, está sempre a surpreender-nos. Há ainda muita coisa por se fazer e a reabilitação é a missão de uma geração. Há que olhar para fora do próprio centro histórico e encontraremos todo um novo território. Para além disso, as operações de reabilitação nunca estão acabadas. Os edifícios exigem adaptações às necessidades que ainda estarão por vir. Não me surpreenderia se daqui a uns anos tivéssemos de reconverter as tipologias minúsculas que invadiram o mercado. Uma cidade não se faz só com estúdios, pois não?

O turismo tem tido um papel importante no desenvolvimento da reabilitação na cidade?

É claro que sim e aqui temos de ser pragmáticos: sem turismo este volume de reabilitação não seria possível. A opção seria manter devolutos e, em muitos casos, em ruína, centenas de prédios. Talvez fosse desejável que o turismo não tivesse tanto peso, mas é esta a realidade que temos e é com ela que temos de trabalhar. Vale sempre a pena olhar para outras experiências, mas o caso do Porto é único. Nenhuma cidade europeia passou por um processo de degradação urbana como foi o caso do Porto. O turismo quando entra em força, sobretudo por causa das companhias low cost, encontra um território que em grande parte, convém não esquecer, se encontrava ao abandono. Para além disso o crescimento exponencial da procura turística não tem qualquer paralelo com qualquer outra experiência, até porque também se trata de um sector que a nível global tem apresentado um crescimento acelerado. Estamos a pisar terreno virgem e isto é algo de novo apesar de aparentemente ter algumas semelhanças com o que se terá passado com algumas cidades europeias como o caso de Barcelona. Não sei até que ponto, poderemos continuar a usar a força motriz do turismo na reabilitação e se não já deveríamos ter começado a pensar numa estratégia pós-turismo.

Que transformações as cidades, como Lisboa e Porto, poderão vir a sofrer com o aumento das reabilitações para fins turísticos?

Em primeiro lugar, uma transformação do edificado. É verdade que se reabilita, mas há uma alteração profunda nas características dos imóveis com o aumento do conforto e eficiência energética destes. Mas «não há bela sem senão»: estas intervenções muitas vezes descaracterizam os imóveis históricos quando não mesmo promovem a sua demolição e a reconstrução de uma imitação. Um dos grandes perigos é precisamente substituir o genuíno pelo pitoresco. Em segundo lugar, a estrutura económica destas cidades dificilmente voltará a ser mesma. Quando a monocultura do turismo se instala, até se podem criar novos empregos, mas há uma redução da diversidade de actividades económicas que devia caracterizar a vida urbana. Este é um dos grandes desafios para as políticas urbanas neste momento. Em terceiro lugar, sem diversidade económica não há diversidade social e cultural. Pode parecer um paradoxo porque, afinal de contas, o afluxo de turistas de todo o mundo deveria significar um incremento do multi culturalismo, mas não. É precisamente o contrário. Estamos cada vez mais iguais, mais hipsterizados por assim dizer. O centro da cidade passa a ser um território dominado pela economia do turismo o que se faz sentir de uma forma muito dramática, por exemplo, no valor das rendas. Assim, se por um lado não nos podemos queixar do aumento das encomendas, por outro lado teremos cada vez mais dificuldade em contratar e fixar colaboradores porque o valor a pagar para residir no centro da cidade é incomportável. As actividades económicas que vão sobrevivendo no centro, recrutam mão-de-obra que reside cada vez mais longe do local de trabalho. O que a médio prazo representa um ónus e uma ameaça muito grave à diversidade económica e social. Haveria outras transformações que valeria a pena aqui enumerar, mas estas por si só já nos devem dar que pensar.

Verifica-se uma tendência de retoma do mercado da construção, ainda que, algo tímida. Mantendo-se esta tendência crescente, acha que voltaremos a privilegiar novas construções em detrimento da reabilitação?

É uma pergunta ainda difícil de responder. Por um lado, a nova construção está localizada mais nas periferias das cidades porque é onde existem terrenos vazios. Por outro, a valorização dos centros das cidades por causa do aumento exponencial do turismo, a procura tem incidido nos centros das cidades. Por esse motivo, poderíamos dizer que para já, enquanto continuar esse interesse pelo turismo, a reabilitação será imperativa. No entanto, e por isso é que digo que é difícil de responder, grande parte da reabilitação que tem sido efectuada nos centros das cidades, têm como função principal os alojamentos locais e os apartamentos de pequena dimensão, deixando por isso de fora os apartamentos maiores para as famílias que querem fixar a família no centro da cidade. Outro motivo é que, os poucos apartamentos que vão existindo pela cidade atingem valores que são poucas as pessoas que podem pagar. Tudo isto faz com que a construção nova nas periferias volte a aumentar. Portanto, acredito é que a construção nova e a reabilitação se completem porque vamos precisar de ambas.

Uma vez que está ligada ao LiderA, acha que Portugal está no bom caminho para a certificação ambiental dos edifícios de acordo com as directrizes da União Europeia, sobretudo os que estão a ser reabilitados?

Mais importante do que a certificação ambiental são algumas premissas que se utilizam para elaborar os projectos. Com a preocupação em aproveitar recursos e em manter o património existente já estamos a minorar a nossa pegada ecológica. Estamos a aproveitar recursos e não estamos a utilizar terrenos que se encontram ainda expectantes. A utilização de edifícios no centro da cidade compacta também reduz a necessidade de transportes e a mobilidade aumenta. Mas essa preocupação tem de surgir dos técnicos porque o mercado está pouco receptivo. De resto, é possível e desejável que o desempenho energético dos edifícios históricos seja melhorado através da adopção de medidas relativamente simples como a mudança para caixilharias certificadas e a melhoria do isolamento térmico. Isto, que é do mais simples que há, continua em grande medida por se fazer. Há sectores da promoção imobiliária que visam apenas o lucro rápido e sacrificam, por exemplo, as condições de conforto e desempenho ambiental mínimas.

Que expectativas têm no futuro da arquitectura em Portugal? Consideram que está a tomar um novo rumo?

Avaliando a partir da nossa experiência e do conhecimento que temos do trabalho que está a ser desenvolvido por colegas, estaria inclinada a dizer que a arquitectura em Portugal encontra-se em processo de reconfiguração que se evidenciará pela crise das “escolas” dominantes e por uma pulverização de tendências e percursos cada vez mais divergentes. Porquê? Porque pela primeira vez estamos perante uma geração que faz o seu percurso profissional sem depender da encomenda pública, trabalhando para dar resposta às solicitações do mercado privado que é muito mais diversificado e instável. Também é a primeira geração globalizada, que acede à informação, à formação, ao trabalho sem passar por mediadores. É também uma geração mais realista, menos obcecada pelas figuras titulares da história da arquitectura ou do star system. É também uma geração que naturalmente opera em modo interdisciplinar, que não consegue sequer pensar na arquitectura sem a contaminar com outras práticas. É a geração canivete-suíço que consegue sintetizar na prática da arquitectura as competências mais díspares. Também gostaria de pensar que esta é a geração de arquitectos mais comprometida e envolvida de sempre em causas cívicas (ambiente, política, património). Se não é, deveria ser. ■

Gabinete:

ADRIANA FLORET - ARQUITECTURA SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA.

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Contacto

Ângela Leitão

aleitao@anteprojectos.com.pt

Directora Geral

Av. Álvares Cabral, nº 61, 6º andar | 1250-017 Lisboa

Telefone 211 308 758 / 966 863 541

“A arquitectura em Portugal encontra-se em processo de reconfiguração...”

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PAG 36 - ADRIANA FLORET - ENTREVISTA

Adriana Floret

arquitecta

César Alves | calves@construir.pt

Tem coordenado vários projectos de reabilitação de edifícios, em especial na cidade do Porto e elaborou documentos estratégicos para quarteirões no centro histórico do Porto. É sócia fundadora e presidente da mesa da assembleia da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Protecção do Património e ainda é assessora do Sistema de Certificação Ambiental LiderA.

O tema da reabilitação esteve sempre presente no seu percurso desde o académico até hoje. Que ambição é está? O que o motiva nesta área?

Quando cheguei ao Porto para estudar arquitectura, deparei-me com uma situação bizarra: por um lado, a cidade encontrava-se num acelerado processo de degradação física e humana (estamos a falar dos anos 90), mas, por outro lado, na faculdade pouca importância se dava a estas questões. O ensino da arquitectura continuava muito centrado na criação de objectos arquitectónicos e não no reaproveitamento dos existentes. Eu própria, como todos os estudantes de arquitectura, vivia fascinada pelos grandes nomes da arquitectura do star system. Comprava compulsivamente revistas, frequentava conferências e coleccionava monografias das grandes obras dos grandes arquitectos. Um dia, caí em mim: andava muito entretida com isto tudo, quando a própria cidade em que eu estudava e vivia era uma magnífica peça de arquitectura em colapso. Quando surgiu a oportunidade de reorientar o meu percurso académico para a reabilitação, senti-me finalmente em casa.

Da sua experiência, esta área da reabilitação se apresenta como um potencial de crescimento?

É evidente que sim. Até ao final dos anos 90 poucos técnicos se dedicavam à reabilitação como principal actividade. Era uma prática menor, por assim dizer. Em 2001, quando comecei a fazer disto um projecto de vida, era muito difícil convencer o cliente particular a investir. Convém dizer que trabalhei desde do início com a encomenda particular e nunca propriamente com a encomenda pública e, por esse motivo, consigo traçar na minha cabeça de uma forma muito clara a percepção do mercado sobre a reabilitação. Mas dizia que era difícil convencer o particular a investir ou, pelo menos, a cuidar do seu próprio património porque a reabilitação era vista como uma responsabilidade do Estado e não como uma oportunidade de negócio. Assim, de início os projectos foram arrancados a ferros e executados muitas vezes com apoio de programas e de apoios públicos. O momento de viragem é 2006/2007 quando começamos a receber de uma forma regular encomendas sustentadas apenas na racionalidade económica da operação urbanística em si mesma, com os apoios a desempenharem um papel marginal na tomada de decisão dos investidores, sobretudo nacionais. Hoje em dia o cenário evoluiu para a internacionalização do sector. Hoje, metades dos nossos projectos são de clientes estrangeiros: belgas, espanhóis, franceses, alemães, israelitas…Só podemos estar optimistas quanto ao futuro, o que não quer dizer que o futuro será o mero prolongamento da situação actual. As coisas irão mudar, o sector vai ter de se readaptar às novas necessidades. A reabilitação irá se estender para territórios menos nobres e periféricos. O parque imobiliário construído a partir dos anos 70, por exemplo, ele próprio precisa de se reinventar e isso é todo um novo desafio técnico e político que teremos pela frente. Também será necessário corrigir muitas asneiras que estão a ser feitas hoje em dia em nome da reabilitação. A moda, de uma alguma forma, passará, mas as coisas não voltarão a ser o que eram. Haverá um período de amadurecimento em que a reabilitação deixará de ser a excepção ou a caça à galinha dos ovos de ouro e passará a ser mais uma disciplina e actividade económica aborrecidamente quotidiana mas vital, fechando-se um ciclo.

Consideram que o trabalho que fazem no vosso gabinete em colaboração com arquitectos-visitantes e gabinetes fará com que as intervenções futuras na reabilitação serão desenvolvidas com os mesmos preceitos ou não é este o objectivo?

Apesar de termos um grupo residente de arquitectos, com a maioria a acompanhar-nos há vários anos, sentimos a necessidade de reforçar a equipa para necessidades específicas, próprias de cada projecto. No entanto, um arquitecto-visitante não é um tarefeiro, mas alguém que trabalha embebido na equipa, ou seja, desenvolve-se uma parceria para um projecto em específico sendo uma das condições que parte do trabalho seja desenvolvido no próprio atelier, onde poderá interagir com os técnicos residentes e usufruir das mesmas condições de trabalho. É claro que o que nos interessa não é apenas a mão-de-obra, mas a própria experiência de intercâmbio entre o elemento externo e a equipa. O arquitecto-visitante acede ao nosso know-how e utiliza os mesmos parâmetros que os colaboradores residentes e, em contrapartida, contamina com a sua própria experiência a equipa residente. Seleccionamos os arquitectos-visitantes em função de vários critérios e dependendo das nossas necessidades do momento: pode ser a formação académica, o domínio de um determinado software, a experiência profissional, etc. Não se trata, por isso, de um estágio mas de um intercâmbio o que quer dizer que devem ter algo mais para oferecer do que a força de trabalho. Só abrimos estágios quando queremos reforçar a equipa residente para podermos formar de raiz os nossos próprios colaboradores. Concluindo: a finalidade desta estratégia é a de revitalizar a nossa prática. O pior que nos pode acontecer é fecharmo-nos sobre nós próprios e perder o contacto com o que se passa à nossa volta. Há uma espinha dorsal que permanece, há um lastro resultante de uma acumulação de experiência, mas a história não acaba aqui, certo? É preciso questionar, é preciso aprender e renovar conhecimentos.

Com que objectivo é que fizeram o levantamento dos edifícios na zona histórica do Porto?

O levantamento de edifícios de uma série de quarteirões na zona histórica e baixa foi uma encomenda da Porto Vivo Sociedade de Reabilitação Urbana. Contextualizando: como desde do início da nossa actividade concentrámos a nossa atenção nesta zona da cidade, quando é constituída a primeira SRU do país, em 2004, fomos naturalmente seleccionados como um dos atelier`s parceiros para a reabilitação. No decurso desta parceria levámos a cabo, em colaboração com a equipa da SRU, o levantamento arquitectónico e social de mais de 250 edifícios e participámos na elaboração das bases para vários documentos estratégicos de operação de reabilitação. Foi a primeira vez que de uma forma tão sistemática se fez um levantamento de uma área tão vasta da cidade. Devo confessar que em resultado deste trabalho de campo (não nos limitávamos a visitar os prédios, fazíamos também um relatório exaustivo de todas as fracções, das condições de habitabilidade e salubridade, bem como o levantamento do cadastro e identificação dos proprietários) chegámos a sentir um certo cepticismo e até desânimo. O abandono a que os imóveis e as pessoas estavam votados ultrapassou tudo aquilo que poderia imaginar. Recordo-me, por exemplo, de uma situação em que quando contactámos o proprietário, este manifestou total surpresa por ter um imóvel no centro histórico. Aliás, começou por negar peremptoriamente, mas, passados alguns dias devolveu a chamada a confirmar que, de facto, era proprietário. Estamos a falar de um imóvel imponente, bem à vista de todos, que não tinha qualquer manutenção há mais de 20 anos…

Como se poderá caracterizar, actualmente, o dinamismo do sector da reabilitação na cidade do Porto?

O Porto foi experimentando vários caminhos. Sempre foi uma cidade que se questionou a si própria, que foi fazendo planos para si própria que foram variando ao gosto das necessidades e do estado da arte em cada época. No passado até se chegou a equacionar a demolição de toda a zona histórica. Ficamo-nos por pequenas demolições parciais como a avenida da ponte ou o Terreiro da Sé (às vezes é bom não ter dinheiro). No pós-25 de Abril a urgência foi a de dar resposta ao verdadeiro estado de calamidade social do centro histórico e durante algum tempo este foi o principal enfoque das políticas por razões muito óbvias. Há um ponto de viragem, apesar de à época pouca gente se ter apercebido disso, que foi o reconhecimento pela UNESCO do Porto como Património da Humanidade. Esta é a data a partir da qual a agenda da reabilitação começou a mudar. Outro ponto verdadeiramente decisivo foi a criação da primeira Sociedade de Reabilitação Urbana do país, em 2004, a qual assume uma missão muito clara: criar condições para o investimento privado na reabilitação. Junte-se a isto o afluxo extraordinário de turistas e temos o porquê do dinamismo deste sector na cidade. O Porto sempre foi dinâmico, a diferença é que o dinamismo actual, para o melhor e para o pior, resulta do forte investimento privado nacional e estrangeiro.

Há ainda espaço para se continuar a reabilitar no Porto?

Ainda há muito espaço para a reabilitação. Conhecemos muito bem a cidade porque o Porto não é uma cidade onde apenas se habita, ela quase que exige um permanente estado de alerta e de atenção. Esta cidade é uma obsessão para todos os portuenses. Mas, ainda assim, está sempre a surpreender-nos. Há ainda muita coisa por se fazer e a reabilitação é a missão de uma geração. Há que olhar para fora do próprio centro histórico e encontraremos todo um novo território. Para além disso, as operações de reabilitação nunca estão acabadas. Os edifícios exigem adaptações às necessidades que ainda estarão por vir. Não me surpreenderia se daqui a uns anos tivéssemos de reconverter as tipologias minúsculas que invadiram o mercado. Uma cidade não se faz só com estúdios, pois não?

O turismo tem tido um papel importante no desenvolvimento da reabilitação na cidade?

É claro que sim e aqui temos de ser pragmáticos: sem turismo este volume de reabilitação não seria possível. A opção seria manter devolutos e, em muitos casos, em ruína, centenas de prédios. Talvez fosse desejável que o turismo não tivesse tanto peso, mas é esta a realidade que temos e é com ela que temos de trabalhar. Vale sempre a pena olhar para outras experiências, mas o caso do Porto é único. Nenhuma cidade europeia passou por um processo de degradação urbana como foi o caso do Porto. O turismo quando entra em força, sobretudo por causa das companhias low cost, encontra um território que em grande parte, convém não esquecer, se encontrava ao abandono. Para além disso o crescimento exponencial da procura turística não tem qualquer paralelo com qualquer outra experiência, até porque também se trata de um sector que a nível global tem apresentado um crescimento acelerado. Estamos a pisar terreno virgem e isto é algo de novo apesar de aparentemente ter algumas semelhanças com o que se terá passado com algumas cidades europeias como o caso de Barcelona. Não sei até que ponto, poderemos continuar a usar a força motriz do turismo na reabilitação e se não já deveríamos ter começado a pensar numa estratégia pós-turismo.

Que transformações as cidades, como Lisboa e Porto, poderão vir a sofrer com o aumento das reabilitações para fins turísticos?

Em primeiro lugar, uma transformação do edificado. É verdade que se reabilita, mas há uma alteração profunda nas características dos imóveis com o aumento do conforto e eficiência energética destes. Mas «não há bela sem senão»: estas intervenções muitas vezes descaracterizam os imóveis históricos quando não mesmo promovem a sua demolição e a reconstrução de uma imitação. Um dos grandes perigos é precisamente substituir o genuíno pelo pitoresco. Em segundo lugar, a estrutura económica destas cidades dificilmente voltará a ser mesma. Quando a monocultura do turismo se instala, até se podem criar novos empregos, mas há uma redução da diversidade de actividades económicas que devia caracterizar a vida urbana. Este é um dos grandes desafios para as políticas urbanas neste momento. Em terceiro lugar, sem diversidade económica não há diversidade social e cultural. Pode parecer um paradoxo porque, afinal de contas, o afluxo de turistas de todo o mundo deveria significar um incremento do multi culturalismo, mas não. É precisamente o contrário. Estamos cada vez mais iguais, mais hipsterizados por assim dizer. O centro da cidade passa a ser um território dominado pela economia do turismo o que se faz sentir de uma forma muito dramática, por exemplo, no valor das rendas. Assim, se por um lado não nos podemos queixar do aumento das encomendas, por outro lado teremos cada vez mais dificuldade em contratar e fixar colaboradores porque o valor a pagar para residir no centro da cidade é incomportável. As actividades económicas que vão sobrevivendo no centro, recrutam mão-de-obra que reside cada vez mais longe do local de trabalho. O que a médio prazo representa um ónus e uma ameaça muito grave à diversidade económica e social. Haveria outras transformações que valeria a pena aqui enumerar, mas estas por si só já nos devem dar que pensar.

Verifica-se uma tendência de retoma do mercado da construção, ainda que, algo tímida. Mantendo-se esta tendência crescente, acha que voltaremos a privilegiar novas construções em detrimento da reabilitação?

É uma pergunta ainda difícil de responder. Por um lado, a nova construção está localizada mais nas periferias das cidades porque é onde existem terrenos vazios. Por outro, a valorização dos centros das cidades por causa do aumento exponencial do turismo, a procura tem incidido nos centros das cidades. Por esse motivo, poderíamos dizer que para já, enquanto continuar esse interesse pelo turismo, a reabilitação será imperativa. No entanto, e por isso é que digo que é difícil de responder, grande parte da reabilitação que tem sido efectuada nos centros das cidades, têm como função principal os alojamentos locais e os apartamentos de pequena dimensão, deixando por isso de fora os apartamentos maiores para as famílias que querem fixar a família no centro da cidade. Outro motivo é que, os poucos apartamentos que vão existindo pela cidade atingem valores que são poucas as pessoas que podem pagar. Tudo isto faz com que a construção nova nas periferias volte a aumentar. Portanto, acredito é que a construção nova e a reabilitação se completem porque vamos precisar de ambas.

Uma vez que está ligada ao LiderA, acha que Portugal está no bom caminho para a certificação ambiental dos edifícios de acordo com as directrizes da União Europeia, sobretudo os que estão a ser reabilitados?

Mais importante do que a certificação ambiental são algumas premissas que se utilizam para elaborar os projectos. Com a preocupação em aproveitar recursos e em manter o património existente já estamos a minorar a nossa pegada ecológica. Estamos a aproveitar recursos e não estamos a utilizar terrenos que se encontram ainda expectantes. A utilização de edifícios no centro da cidade compacta também reduz a necessidade de transportes e a mobilidade aumenta. Mas essa preocupação tem de surgir dos técnicos porque o mercado está pouco receptivo. De resto, é possível e desejável que o desempenho energético dos edifícios históricos seja melhorado através da adopção de medidas relativamente simples como a mudança para caixilharias certificadas e a melhoria do isolamento térmico. Isto, que é do mais simples que há, continua em grande medida por se fazer. Há sectores da promoção imobiliária que visam apenas o lucro rápido e sacrificam, por exemplo, as condições de conforto e desempenho ambiental mínimas.

Que expectativas têm no futuro da arquitectura em Portugal? Consideram que está a tomar um novo rumo?

Avaliando a partir da nossa experiência e do conhecimento que temos do trabalho que está a ser desenvolvido por colegas, estaria inclinada a dizer que a arquitectura em Portugal encontra-se em processo de reconfiguração que se evidenciará pela crise das “escolas” dominantes e por uma pulverização de tendências e percursos cada vez mais divergentes. Porquê? Porque pela primeira vez estamos perante uma geração que faz o seu percurso profissional sem depender da encomenda pública, trabalhando para dar resposta às solicitações do mercado privado que é muito mais diversificado e instável. Também é a primeira geração globalizada, que acede à informação, à formação, ao trabalho sem passar por mediadores. É também uma geração mais realista, menos obcecada pelas figuras titulares da história da arquitectura ou do star system. É também uma geração que naturalmente opera em modo interdisciplinar, que não consegue sequer pensar na arquitectura sem a contaminar com outras práticas. É a geração canivete-suíço que consegue sintetizar na prática da arquitectura as competências mais díspares. Também gostaria de pensar que esta é a geração de arquitectos mais comprometida e envolvida de sempre em causas cívicas (ambiente, política, património). Se não é, deveria ser. ■

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ADRIANA FLORET - ARQUITECTURA SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA.

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Tem coordenado vários projectos de reabilitação de edifícios, em especial na cidade do Porto e elaborou documentos estratégicos para quarteirões no centro histórico do Porto. É sócia fundadora e presidente da mesa da assembleia da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Protecção do Património e ainda é assessora do Sistema de Certificação Ambiental LiderA.

O tema da reabilitação esteve sempre presente no seu percurso desde o académico até hoje. Que ambição é está? O que o motiva nesta área?

Quando cheguei ao Porto para estudar arquitectura, deparei-me com uma situação bizarra: por um lado, a cidade encontrava-se num acelerado processo de degradação física e humana (estamos a falar dos anos 90), mas, por outro lado, na faculdade pouca importância se dava a estas questões. O ensino da arquitectura continuava muito centrado na criação de objectos arquitectónicos e não no reaproveitamento dos existentes. Eu própria, como todos os estudantes de arquitectura, vivia fascinada pelos grandes nomes da arquitectura do star system. Comprava compulsivamente revistas, frequentava conferências e coleccionava monografias das grandes obras dos grandes arquitectos. Um dia, caí em mim: andava muito entretida com isto tudo, quando a própria cidade em que eu estudava e vivia era uma magnífica peça de arquitectura em colapso. Quando surgiu a oportunidade de reorientar o meu percurso académico para a reabilitação, senti-me finalmente em casa.

Da sua experiência, esta área da reabilitação se apresenta como um potencial de crescimento?

É evidente que sim. Até ao final dos anos 90 poucos técnicos se dedicavam à reabilitação como principal actividade. Era uma prática menor, por assim dizer. Em 2001, quando comecei a fazer disto um projecto de vida, era muito difícil convencer o cliente particular a investir. Convém dizer que trabalhei desde do início com a encomenda particular e nunca propriamente com a encomenda pública e, por esse motivo, consigo traçar na minha cabeça de uma forma muito clara a percepção do mercado sobre a reabilitação. Mas dizia que era difícil convencer o particular a investir ou, pelo menos, a cuidar do seu próprio património porque a reabilitação era vista como uma responsabilidade do Estado e não como uma oportunidade de negócio. Assim, de início os projectos foram arrancados a ferros e executados muitas vezes com apoio de programas e de apoios públicos. O momento de viragem é 2006/2007 quando começamos a receber de uma forma regular encomendas sustentadas apenas na racionalidade económica da operação urbanística em si mesma, com os apoios a desempenharem um papel marginal na tomada de decisão dos investidores, sobretudo nacionais. Hoje em dia o cenário evoluiu para a internacionalização do sector. Hoje, metades dos nossos projectos são de clientes estrangeiros: belgas, espanhóis, franceses, alemães, israelitas…Só podemos estar optimistas quanto ao futuro, o que não quer dizer que o futuro será o mero prolongamento da situação actual. As coisas irão mudar, o sector vai ter de se readaptar às novas necessidades. A reabilitação irá se estender para territórios menos nobres e periféricos. O parque imobiliário construído a partir dos anos 70, por exemplo, ele próprio precisa de se reinventar e isso é todo um novo desafio técnico e político que teremos pela frente. Também será necessário corrigir muitas asneiras que estão a ser feitas hoje em dia em nome da reabilitação. A moda, de uma alguma forma, passará, mas as coisas não voltarão a ser o que eram. Haverá um período de amadurecimento em que a reabilitação deixará de ser a excepção ou a caça à galinha dos ovos de ouro e passará a ser mais uma disciplina e actividade económica aborrecidamente quotidiana mas vital, fechando-se um ciclo.

Consideram que o trabalho que fazem no vosso gabinete em colaboração com arquitectos-visitantes e gabinetes fará com que as intervenções futuras na reabilitação serão desenvolvidas com os mesmos preceitos ou não é este o objectivo?

Apesar de termos um grupo residente de arquitectos, com a maioria a acompanhar-nos há vários anos, sentimos a necessidade de reforçar a equipa para necessidades específicas, próprias de cada projecto. No entanto, um arquitecto-visitante não é um tarefeiro, mas alguém que trabalha embebido na equipa, ou seja, desenvolve-se uma parceria para um projecto em específico sendo uma das condições que parte do trabalho seja desenvolvido no próprio atelier, onde poderá interagir com os técnicos residentes e usufruir das mesmas condições de trabalho. É claro que o que nos interessa não é apenas a mão-de-obra, mas a própria experiência de intercâmbio entre o elemento externo e a equipa. O arquitecto-visitante acede ao nosso know-how e utiliza os mesmos parâmetros que os colaboradores residentes e, em contrapartida, contamina com a sua própria experiência a equipa residente. Seleccionamos os arquitectos-visitantes em função de vários critérios e dependendo das nossas necessidades do momento: pode ser a formação académica, o domínio de um determinado software, a experiência profissional, etc. Não se trata, por isso, de um estágio mas de um intercâmbio o que quer dizer que devem ter algo mais para oferecer do que a força de trabalho. Só abrimos estágios quando queremos reforçar a equipa residente para podermos formar de raiz os nossos próprios colaboradores. Concluindo: a finalidade desta estratégia é a de revitalizar a nossa prática. O pior que nos pode acontecer é fecharmo-nos sobre nós próprios e perder o contacto com o que se passa à nossa volta. Há uma espinha dorsal que permanece, há um lastro resultante de uma acumulação de experiência, mas a história não acaba aqui, certo? É preciso questionar, é preciso aprender e renovar conhecimentos.

Com que objectivo é que fizeram o levantamento dos edifícios na zona histórica do Porto?

O levantamento de edifícios de uma série de quarteirões na zona histórica e baixa foi uma encomenda da Porto Vivo Sociedade de Reabilitação Urbana. Contextualizando: como desde do início da nossa actividade concentrámos a nossa atenção nesta zona da cidade, quando é constituída a primeira SRU do país, em 2004, fomos naturalmente seleccionados como um dos atelier`s parceiros para a reabilitação. No decurso desta parceria levámos a cabo, em colaboração com a equipa da SRU, o levantamento arquitectónico e social de mais de 250 edifícios e participámos na elaboração das bases para vários documentos estratégicos de operação de reabilitação. Foi a primeira vez que de uma forma tão sistemática se fez um levantamento de uma área tão vasta da cidade. Devo confessar que em resultado deste trabalho de campo (não nos limitávamos a visitar os prédios, fazíamos também um relatório exaustivo de todas as fracções, das condições de habitabilidade e salubridade, bem como o levantamento do cadastro e identificação dos proprietários) chegámos a sentir um certo cepticismo e até desânimo. O abandono a que os imóveis e as pessoas estavam votados ultrapassou tudo aquilo que poderia imaginar. Recordo-me, por exemplo, de uma situação em que quando contactámos o proprietário, este manifestou total surpresa por ter um imóvel no centro histórico. Aliás, começou por negar peremptoriamente, mas, passados alguns dias devolveu a chamada a confirmar que, de facto, era proprietário. Estamos a falar de um imóvel imponente, bem à vista de todos, que não tinha qualquer manutenção há mais de 20 anos…

Como se poderá caracterizar, actualmente, o dinamismo do sector da reabilitação na cidade do Porto?

O Porto foi experimentando vários caminhos. Sempre foi uma cidade que se questionou a si própria, que foi fazendo planos para si própria que foram variando ao gosto das necessidades e do estado da arte em cada época. No passado até se chegou a equacionar a demolição de toda a zona histórica. Ficamo-nos por pequenas demolições parciais como a avenida da ponte ou o Terreiro da Sé (às vezes é bom não ter dinheiro). No pós-25 de Abril a urgência foi a de dar resposta ao verdadeiro estado de calamidade social do centro histórico e durante algum tempo este foi o principal enfoque das políticas por razões muito óbvias. Há um ponto de viragem, apesar de à época pouca gente se ter apercebido disso, que foi o reconhecimento pela UNESCO do Porto como Património da Humanidade. Esta é a data a partir da qual a agenda da reabilitação começou a mudar. Outro ponto verdadeiramente decisivo foi a criação da primeira Sociedade de Reabilitação Urbana do país, em 2004, a qual assume uma missão muito clara: criar condições para o investimento privado na reabilitação. Junte-se a isto o afluxo extraordinário de turistas e temos o porquê do dinamismo deste sector na cidade. O Porto sempre foi dinâmico, a diferença é que o dinamismo actual, para o melhor e para o pior, resulta do forte investimento privado nacional e estrangeiro.

Há ainda espaço para se continuar a reabilitar no Porto?

Ainda há muito espaço para a reabilitação. Conhecemos muito bem a cidade porque o Porto não é uma cidade onde apenas se habita, ela quase que exige um permanente estado de alerta e de atenção. Esta cidade é uma obsessão para todos os portuenses. Mas, ainda assim, está sempre a surpreender-nos. Há ainda muita coisa por se fazer e a reabilitação é a missão de uma geração. Há que olhar para fora do próprio centro histórico e encontraremos todo um novo território. Para além disso, as operações de reabilitação nunca estão acabadas. Os edifícios exigem adaptações às necessidades que ainda estarão por vir. Não me surpreenderia se daqui a uns anos tivéssemos de reconverter as tipologias minúsculas que invadiram o mercado. Uma cidade não se faz só com estúdios, pois não?

O turismo tem tido um papel importante no desenvolvimento da reabilitação na cidade?

É claro que sim e aqui temos de ser pragmáticos: sem turismo este volume de reabilitação não seria possível. A opção seria manter devolutos e, em muitos casos, em ruína, centenas de prédios. Talvez fosse desejável que o turismo não tivesse tanto peso, mas é esta a realidade que temos e é com ela que temos de trabalhar. Vale sempre a pena olhar para outras experiências, mas o caso do Porto é único. Nenhuma cidade europeia passou por um processo de degradação urbana como foi o caso do Porto. O turismo quando entra em força, sobretudo por causa das companhias low cost, encontra um território que em grande parte, convém não esquecer, se encontrava ao abandono. Para além disso o crescimento exponencial da procura turística não tem qualquer paralelo com qualquer outra experiência, até porque também se trata de um sector que a nível global tem apresentado um crescimento acelerado. Estamos a pisar terreno virgem e isto é algo de novo apesar de aparentemente ter algumas semelhanças com o que se terá passado com algumas cidades europeias como o caso de Barcelona. Não sei até que ponto, poderemos continuar a usar a força motriz do turismo na reabilitação e se não já deveríamos ter começado a pensar numa estratégia pós-turismo.

Que transformações as cidades, como Lisboa e Porto, poderão vir a sofrer com o aumento das reabilitações para fins turísticos?

Em primeiro lugar, uma transformação do edificado. É verdade que se reabilita, mas há uma alteração profunda nas características dos imóveis com o aumento do conforto e eficiência energética destes. Mas «não há bela sem senão»: estas intervenções muitas vezes descaracterizam os imóveis históricos quando não mesmo promovem a sua demolição e a reconstrução de uma imitação. Um dos grandes perigos é precisamente substituir o genuíno pelo pitoresco. Em segundo lugar, a estrutura económica destas cidades dificilmente voltará a ser mesma. Quando a monocultura do turismo se instala, até se podem criar novos empregos, mas há uma redução da diversidade de actividades económicas que devia caracterizar a vida urbana. Este é um dos grandes desafios para as políticas urbanas neste momento. Em terceiro lugar, sem diversidade económica não há diversidade social e cultural. Pode parecer um paradoxo porque, afinal de contas, o afluxo de turistas de todo o mundo deveria significar um incremento do multi culturalismo, mas não. É precisamente o contrário. Estamos cada vez mais iguais, mais hipsterizados por assim dizer. O centro da cidade passa a ser um território dominado pela economia do turismo o que se faz sentir de uma forma muito dramática, por exemplo, no valor das rendas. Assim, se por um lado não nos podemos queixar do aumento das encomendas, por outro lado teremos cada vez mais dificuldade em contratar e fixar colaboradores porque o valor a pagar para residir no centro da cidade é incomportável. As actividades económicas que vão sobrevivendo no centro, recrutam mão-de-obra que reside cada vez mais longe do local de trabalho. O que a médio prazo representa um ónus e uma ameaça muito grave à diversidade económica e social. Haveria outras transformações que valeria a pena aqui enumerar, mas estas por si só já nos devem dar que pensar.

Verifica-se uma tendência de retoma do mercado da construção, ainda que, algo tímida. Mantendo-se esta tendência crescente, acha que voltaremos a privilegiar novas construções em detrimento da reabilitação?

É uma pergunta ainda difícil de responder. Por um lado, a nova construção está localizada mais nas periferias das cidades porque é onde existem terrenos vazios. Por outro, a valorização dos centros das cidades por causa do aumento exponencial do turismo, a procura tem incidido nos centros das cidades. Por esse motivo, poderíamos dizer que para já, enquanto continuar esse interesse pelo turismo, a reabilitação será imperativa. No entanto, e por isso é que digo que é difícil de responder, grande parte da reabilitação que tem sido efectuada nos centros das cidades, têm como função principal os alojamentos locais e os apartamentos de pequena dimensão, deixando por isso de fora os apartamentos maiores para as famílias que querem fixar a família no centro da cidade. Outro motivo é que, os poucos apartamentos que vão existindo pela cidade atingem valores que são poucas as pessoas que podem pagar. Tudo isto faz com que a construção nova nas periferias volte a aumentar. Portanto, acredito é que a construção nova e a reabilitação se completem porque vamos precisar de ambas.

Uma vez que está ligada ao LiderA, acha que Portugal está no bom caminho para a certificação ambiental dos edifícios de acordo com as directrizes da União Europeia, sobretudo os que estão a ser reabilitados?

Mais importante do que a certificação ambiental são algumas premissas que se utilizam para elaborar os projectos. Com a preocupação em aproveitar recursos e em manter o património existente já estamos a minorar a nossa pegada ecológica. Estamos a aproveitar recursos e não estamos a utilizar terrenos que se encontram ainda expectantes. A utilização de edifícios no centro da cidade compacta também reduz a necessidade de transportes e a mobilidade aumenta. Mas essa preocupação tem de surgir dos técnicos porque o mercado está pouco receptivo. De resto, é possível e desejável que o desempenho energético dos edifícios históricos seja melhorado através da adopção de medidas relativamente simples como a mudança para caixilharias certificadas e a melhoria do isolamento térmico. Isto, que é do mais simples que há, continua em grande medida por se fazer. Há sectores da promoção imobiliária que visam apenas o lucro rápido e sacrificam, por exemplo, as condições de conforto e desempenho ambiental mínimas.

Que expectativas têm no futuro da arquitectura em Portugal? Consideram que está a tomar um novo rumo?

Avaliando a partir da nossa experiência e do conhecimento que temos do trabalho que está a ser desenvolvido por colegas, estaria inclinada a dizer que a arquitectura em Portugal encontra-se em processo de reconfiguração que se evidenciará pela crise das “escolas” dominantes e por uma pulverização de tendências e percursos cada vez mais divergentes. Porquê? Porque pela primeira vez estamos perante uma geração que faz o seu percurso profissional sem depender da encomenda pública, trabalhando para dar resposta às solicitações do mercado privado que é muito mais diversificado e instável. Também é a primeira geração globalizada, que acede à informação, à formação, ao trabalho sem passar por mediadores. É também uma geração mais realista, menos obcecada pelas figuras titulares da história da arquitectura ou do star system. É também uma geração que naturalmente opera em modo interdisciplinar, que não consegue sequer pensar na arquitectura sem a contaminar com outras práticas. É a geração canivete-suíço que consegue sintetizar na prática da arquitectura as competências mais díspares. Também gostaria de pensar que esta é a geração de arquitectos mais comprometida e envolvida de sempre em causas cívicas (ambiente, política, património). Se não é, deveria ser. ■

Gabinete:

ADRIANA FLORET - ARQUITECTURA SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA.